

Fadiga intensa, sono ruim, prurido entre as escápulas, digestão lenta, gases, azia, dor de cabeça e “gripes” freqüentes.
Essas eram as principais queixas de Sônia*, casada, 39 anos, fala fanhosa, magra e pálida, com enormes olheiras. Em sua enésima consulta, tem diante de si mais um médico perplexo, que chamaremos de “Dr. X”.
Cansada de procurar médicos e não médicos, tomar remédios, fazer exames e tentar as “curas” mais bizarras, Sônia não esconde seu desânimo. As queixas se perdiam no tempo, e apesar das tentativas, só pioravam. O novo médico esforça-se por tirar vantagem das impressões diagnósticas dos colegas, que iam da síndrome do intestino irritável a algum transtorno emocional.
O exame físico era normal, com exceção de xerostomia (pele seca) e abdome ligeiramente dolorido à palpação superficial. Não havia nada de errado nos achados laboratoriais além do colesterol um pouco alto, nem mesmo nas provas da função tiroideana. Aliás, a primeira suspeita havia sido hipotiroidismo, com base em vários indícios, exceto magreza.
Não havia anemia e, aparentemente, nenhuma doença nutricional primária. As dosagens séricas de nutrientes (particularmente a vitamina D, antes baixa) agora estavam normais, após alguns meses de suplementação, mas sem melhora significativa do quadro clínico.
Duas endoscopias recentes e uma colonoscopia (havia um caso de câncer de intestino na família) completamente normais. E para complicar o mistério, exames negativos para intolerância à lactose e todos os testes para doença celíaca – os auto-anticorpos e a biópsia duodenal – também completamente normais.
À endoscopia, sequer uma leve gastrite ou pólipo. Há seis meses, Sônia havia sido encaminhada a um psiquiatra, que lhe prescreveu um antidepressivo pela manhã e um ansiolítico à noite, apostando num quadro de transtorno depressivo mesclado com ansiedade. E eram esses os medicamentos em uso, além dos suplementos nutricionais.
Depois de conferir aquela longa história e um monte de exames, o médico não chega a conclusão alguma. “Um daqueles desafios” – pensa ele – “Felizmente, o caso de Sônia não é o primeiro, e não será o último”.
Já fazia alguns anos, o Dr. X vinha colecionando um conjunto parecido de queixas como as de Sônia, centradas na má digestão e na fadiga, mas podendo acompanhar-se também de infecções de repetição e certas manifestações de pele aparentemente alérgicas. Exatamente por isso ela o procurava, por indicação de alguém com problema parecido, e que experimentara melhora com o que havia sugerido.
Desponta nela uma fagulha de esperança quando o médico começa a expor sua opinião:
– Acredito que seu problema pode ter também uma causa alimentar. Deixe-me explicar: Nosso organismo pode ter intolerância e/ou alergia a certos alimentos, o que pode provocar muitos dos sintomas que você acabou de relatar
– Mas doutor – interrompe-lhe meio incrédula – já passei por um alergista e ele pediu todos os testes possíveis, e não descobriu nada… Disse-me que poderia comer o que quisesse, pois não tinha alergia a alimento algum!
Já esperando por isso, Dr. X deu um suspiro e retomou sua explicação:
– Sônia, não é muito fácil diagnosticarmos alergias ou intolerâncias alimentares, pois os alimentos têm uma infinidade, um número incontável, de substâncias passíveis de agir como “antígenos”, na sua maioria proteínas, isto é, capazes de desencadear alergias. E nem sempre poderemos detectar isso na pele. Por isso, os testes de que dispomos hoje, se derem positivos, dificilmente serão “falso positivos”, isto é, estarão errados. Mas, se derem negativos, poderão dar um “falso negativo”, ou seja, talvez você seja sensível a um dado alimento e o teste não consiga acusar de modo claro.
– Ansiosa como sempre, Sônia o interrompe de novo: Então, como podemos saber se temos ou não algum tipo de reação a algum alimento? Existe algum outro exame?
-Na minha opinião o melhor teste é tirar por algum tempo, pelo menos um mês, o alimento suspeito, e depois devolvê-lo. Se há melhora dos sintomas na retirada e piora ao usá-lo novamente, é claro que deve haver algum tipo de intolerância ou reação adversa. Chamamos este teste, simples mas eficaz, de “supressão-provocação”. Você faz uma lista de alimentos suspeitos e retira um por um, durante um mês, e anota os resultados.
Dieta acima de qualquer suspeita
O passo seguinte foi fazer uma cuidadosa anamnese alimentar, que ajudou a esclarecer o problema de Sônia mais do que todos os exames. Ela já evitava açúcar, frituras e carnes gordas, preferindo mel e carnes magras, e não consumia nenhum tipo das vulgarmente chamadas “porcarias”. Nada de doces, balas, guloseimas, refrigerantes, chocolate. Preferia e consumia a maior parte de seus alimentos sem agrotóxicos, que obtinha numa feira de “orgânicos” perto de casa.
À primeira vista, uma dieta saudável e balanceada. Procurava seguir um cardápio profissionalmente orientado. Em matéria de alimentação, no que diz respeito à qualidade, Sônia era muito mais exigente que a média das pessoas.
Para a maioria dos profissionais, uma dieta assim pareceria acima de qualquer suspeita. Mas havia algo que ninguém até então havia notado. Os principais alimentos frequentadores de sua dieta eram o trigo (na forma de pão, macarrão e biscoitos) e laticínios (na forma de leite, creme de leite e queijo). Ela preferia o trigo integral e o queijo branco, que considerava saudáveis.
Geralmente o alimento mais apreciado, o mais onipresente, é também o mais suspeito. É claro que isso poderá ocasionar certo constrangimento, certa resistência, quando se tem de focar justamente os itens prediletos. Pior ainda, esses itens podem parecer perfeitamente inocentes, o que não raro torna muito difícil persuadir o paciente. Creio que por isso muitos colegas tenham verdadeiro “terror” desta abordagem, que consideram “cansativa”, “inoportuna”, até “radical”!
Mas, como você verá a seguir, em vez de “radical”, representou para Sônia tudo que ela mais desejava: ver-se livre de seu interminável sofrimento.
Conceito novo e estranho
Para o leitor isso pode parecer novo e estranho. Mas hoje cresce o debate em torno do intrigante tema da intolerância ou reação adversa a alimentos muitas vezes considerados insuspeitos. Não queremos dizer que o alimento em questão não seja “saudável”, mas que, para determinada pessoa, é capaz de produzir intolerância e/ou alergia, com sintomas os mais variados, como os que faziam Sônia sofrer havia tanto tempo.
Por outro lado – é preciso dizer – tenho também notado, no extremo oposto, a tendência de se caçar avidamente causas alimentares para tudo, subestimando-se a investigação rotineira e incorrendo-se também em erro. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Cada caso obviamente é único, e quando surgem desafios como os referidos, impõe-se ao médico uma imersão profunda, que vai do roteiro diagnóstico convencional a possíveis e prováveis causas alimentares.
Voltando ao nosso caso, Sônia fez os testes de supressão e provocação e retornou várias vezes. Sua resposta foi bastante forte ao trigo e ao leite, indicando intolerância a esses alimentos! Ela ficou pasma diante dos resultados e se dispôs a mudar sua dieta. Mais tarde confessou, como muitos outros sofredores de mal idêntico, que “não foi fácil”, pois a dieta sem trigo e sem produtos lácteos é até certo ponto “restritiva” e “cara”. Mas, com o tempo, aprendeu a fazer as substituições, com o mínimo prejuízo para o paladar.
E suas numerosas queixas? Quase todas desapareceram ou melhoraram substancialmente. As doenças não têm uma única causa, e, no caso de Sônia, havia também um importante componente emocional, que ela nunca superou totalmente.
Grande mudança para melhor
A vida de Sônia mudou para melhor, depois que sua atenção foi dirigida para o que nos permitimos chamar de “doença desconhecida”. Mas é importante salientar que as manifestações desse mal não são obrigatoriamente e sempre as que acabamos de descrever aqui – cansaço, prurido, infecções, má digestão, cefaléia (dor de cabeça) etc. Podem variar muito de pessoa para pessoa. Os alimentos provocadores de intolerância também podem variar. Mas, os mais recorrentes são invariavelmente o trigo, o laticínio e todos os derivados.
Ao longo de décadas de prática clínica e nutricional, concluí que isso acontece com freqüência – talvez muito maior do que imaginamos e sabemos.
Esse é um artigo que descreve um caso clínico numa linguagem popular e acessível, mas há cada vez mais estudos científicos indexados que endossam nossa suspeita. Se você é médico, nutricionista ou outro profissional de saúde, em próximo artigo apresentaremos, numa abordagem científica, o tema da sensibilidade não celíaca ao glúten.
Se você se identificou com o caso de Sônia, quem sabe, parte da explicação para algum mal-estar que o incomoda há bastante tempo não estaria aqui.
ATENÇÃO: jamais mude sua dieta, nem altere seu tratamento sem conhecimento e permissão de seu médico e nutricionista, pois, assim como pode haver alguma correlação com o que acabamos de expor, pode não haver, e há risco em abandonar alimentos básicos e nutritivos sem substituições adequadas, aliadas a um correto balanceamento alimentar.
* O nome “Sônia” é fictício, mas o caso é inspirado em fatos reais.